A dança é cósmica

Quando os portugueses avistaram o Brasil, devem ter tido um misto de alívio – Conseguimos! – e deslumbramento. Quem não se deslumbraria com a natureza daquele litoral? E eram praias perfeitas. Respeitadas.   Mas houve outra surpresa: já havia gente aqui. E uma gente bronzeada, com uma pele de um lindo avermelhado diferente, praticamente nua. Não totalmente, pois penas serviam como um adorno aqui e outro lá.

            Como iniciar o contato? Os portugueses devem ter pensado: ‘Seriam os índios mais agressivos que nós, exploradores e colonizadores?’ Eles falavam uma língua muito diferente. Conheceriam espelhos? Na dúvida, tentou-se, e espelhos chegaram às mãos indígenas.

            E os índios devem ter pensado: que gente é essa que não se conhece, que precisa se ver refletida? Que gente é essa que chega em levas, em canoas enormes, saindo de seus lugares para se aventurar em nosso lugar? E por que cobrem os corpos? Teriam vergonha de si mesmos?

            Assim, estranhamentos aconteceram dos dois lados. Mas com uma diferença muito importante: os índios eram os donos daqui. E os portugueses fizeram como aquela visita chata que se demora além da conta, uma demora de séculos. Se os índios soubessem da vassoura invertida atrás da porta, com certeza usariam.

            Enfim, passaram-se séculos e aquela terra – antes, Pindorama − se chamou Brasil. Há uma grande diferença entre os índios e os autodenominados civilizados: a relação com a natureza. Os índios se sentem parte da natureza, são um elemento a mais, somente. Mas os civilizados… Bem, os civilizados sentem-se acima da natureza, a ponto de explorá-la muito além de suas necessidades, pois a natureza pode render lucro.

Dois pontos importantes: a natureza é esgotável. Aquele rio enorme, caudaloso, existe se houver equilíbrio, se não for poluído, se tiver seu contorno mantido, se não for canalizado, assoreado. Aquela floresta imensa, que faz fotossíntese e respira, num equilíbrio delicado, existe se não for tratada a machado e motosserra. Aquela montanha no horizonte mantém-se, a não ser que seja talhada para tirar-lhe das entranhas seus elementos e pedras, tão preciosos para o civilizado. A natureza se esgota, mas a imaginação do civilizado é inesgotável, quando se alia à cobiça.

Outro ponto muito importante, que li uma vez e acho de uma grande inteligência: a Terra não tem o lado de fora. Não há como descartar o que se produz, tudo volta para dentro. Assim, nossa casa maior, entulhada e engasgada, responde.

Os índios, de sabedoria milenar, sabem disso e respeitam demais a própria casa para maltratá-la. A árvore que cai, o animal caçado por lazer (?), o rio poluído… Tudo isso faz o índio cair também, morrer também, sentir-se maculado também.

Como diz o índio Ailton Krenak – quando tiverem oportunidade, ouçam esse sábio, que fala sempre com um sorriso generoso nos lábios − “A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho”. Acho que temos de levar esse choque da realidade para sabermos da nossa real dimensão: não somos donos da Terra, apenas a ocupamos e temos de fazer por onde ter o direto a essa ocupação. Krenak foi perguntado quanto a estar sempre sorrindo, alegre, mesmo em situações muito difíceis. Ele disse: ‘Estamos juntos na Terra, fazemos todos parte. Se você fosse convidado para uma dança cósmica, você iria como? Triste ou sorrindo?’. E, quem perguntou, sorriu, também.

Há alguns rótulos a serem rasgados. Os índios são selvagens. Sim, porque vivem na selva, não porque são agressivos. A agressão, quando existe, é uma defesa do seu território, que se confunde com sua vivência física e cultural.

Há muitos índios aculturados, aqueles com jeans e celulares. Os civilizados se interessaram pelas terras dos índios e chegaram com subterfúgios para seduzi-los, a ponto de torná-los dependentes das novidades e mais fáceis de serem removidos dali ou não manifestarem resistência. O celular de hoje é o espelho lá de trás. E por que não apresentá-los à cachaça? É viciante na medida certa.

Contudo, há outro lado interessante nessa aculturação: há índios que resolveram se formar nos conhecimentos dos civilizados. Há os enfermeiros índios, por exemplo, que se formam e retornam à aldeia para fazer a diferença entre os seus.

Há, entre os civilizados, os que compreendem e admiram os índios, fazendo de tudo para que eles mantenham suas terras e sua cultura. Um funcionário da Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão de proteção dos povos originários do Brasil, morreu, neste ano, após ser atingido por uma flecha disparada por índios isolados que habitam a Amazónia. É Rieli Franciscato, então com 56 anos, que se dedicava há mais de três décadas à proteção de índios isolados do Brasil. Ironia, não é? Os índios não sabiam que ele estava ali para protegê-los. E por que se mantêm isolados? Vamos nos lembrar de que há invasões, há epidemias para as quais os índios não têm defesa e há agressões. A defesa deles é se isolar e, se preciso, reagir com suas armas.

Talvez não tenhamos consciência de tudo o que os índios nos legaram. Andar descalços, o banho diário, descansar e dormir em redes… Na alimentação, a mandioca – aquele biju, aquela tapioca, aquela farinha − e o peixe… O poder medicinal das plantas, que os pajés sabem e usam para curar. E êpa!!! Olha a esperteza do saci, olha o ecológico curupira! Os muitos e muitos nomes de lugares, bairros, cidades, rios, montanhas… E as coisas, as canoas, os instrumentos musicais, a dança, a música… E, acho eu, a alegria, que vem de viver em harmonia com o verde das plantas, o azul dos rios e do céu, do saber parar e admirar tudo o que a natureza generosa traz.

Não é de se lamentar acabar com tudo isso pelo dinheiro? O ouro é extraído e, no lugar, deixa-se mercúrio nos rios, que mata os peixes e, num efeito acumulativo, causa danos neurológicos irreversíveis. Como é que é? Vem uma conversa muito larápia de índios pobres em terras ricas. O que é pobre? A riqueza da terra está na árvore em pé, está no rio conservado, está na fauna. Sabemos que a ignorância é atrevida e muitos que defendem a exploração à exaustão nem sabem que os rios aéreos que se formam a partir da floresta é que possibilitam as safras recordes do centro-oeste e do sudeste.

As línguas indígenas – há centenas – nos legaram palavras do dia a dia. Tem capivara invadindo a cidade, a catapora tem vacina, a hora do mingau do bebê, a peteca que diverte, a tocaia que surpreende…

Vamos nos lembrar de que a pindaíba, no sentido de penúria, pode alcançar todos, se cada um não faz sua parte.

E vejo a imagem de uma tribo. E de uma rede. Como os índios sabem trabalhar e descansar! Vem-me um sorriso nos lábios. Mas, espera… Tem uma indiazinha na rede. E ela não está descansando depois de brincar, pular e nadar com os outros curumins. Ela está em estado de inanição. Como assim? Cadê a sabedoria milenar que trouxe aos índios o equilíbrio da alimentação? Eles sabem o que comer e beber, mas houve desmatamento e levou a caça, a água já é escassa e os mosquitos da malária se fazem mais presentes. E não há assistência? Até há, mas não deu tempo.

Outro ponto importantíssimo: as crianças indígenas são responsabilidade de todos e todas da tribo. A morte dessa criança é uma derrota de todos e todas, eles ‘morreram’ junto com ela. E eu, também.

Em décadas e décadas de convivência respeitosa com os índios, os agentes de saúde nunca presenciaram uma cena dessa. Todos ficaram surpresos.

Há outra palavra que usamos muito: nhe-nhe-nhem, que quer dizer muita fala, mas pouco producente. Chega, não é? Há leis protetoras, a Constituição garante os direitos dos indígenas. A palavra, pela sonoridade, poderia ser uma canção de ninar para a indiazinha, balançando-se a rede para que dormisse. Não deu tempo.

Zelinda Martins, 57 anos, Odontóloga não atuante, Mestre em Língua Portuguesa e Revisora de textos em Português. Observadora do mundo.

Tela: Oscar Pereira da Silva