A história de Eurípides: o relojoeiro da Rua Conde do Pinhal

Diziam que Eurípides tinha mãos de ouro. Nenhum relógio quebrado, por mais antigo ou enferrujado, resistia ao toque fino de seus dedos — dedos que pareciam ouvir o tique-taque como quem escuta o coração de um moribundo. Sua pequena relojoaria, instalada na esquina da Conde do Pinhal com a São Joaquim, no coração de São Carlos, cheirava a óleo, metal e tempo. Tempo gasto, tempo perdido, tempo roubado.

Nos anos 60, era impossível cruzar o centro sem ouvir o suave coro dos relógios de Eurípides. Uns batiam compassados, outros arranhavam o silêncio com tiques que mais pareciam soluços. Havia sempre um novo som ali dentro — uma respiração disfarçada, um gemido discreto entre os ponteiros.

As pessoas juravam que saíam de lá diferentes. Um pouco mais pálidas, um tanto mais cansadas, como se tivessem deixado algo para trás. Diziam também que os relógios, depois do conserto, ganhavam uma vida própria: uns paravam exatamente na hora da morte de seus donos; outros adiantavam dias inteiros, apressando a velhice e o destino.

Eurípides nunca cobrava caro. Só pedia uma coisa simples: que o cliente deixasse o relógio sozinho com ele durante a noite. “O tempo precisa dormir comigo”, dizia, com aquele sorriso que não chegava aos olhos.

Ninguém sabia muito sobre sua vida. Dormia nos fundos da relojoaria, entre engrenagens e pêndulos que balançavam sozinhos. Às vezes, vizinhos juravam ter ouvido vozes ao amanhecer — vozes pedindo ajuda, vozes que saíam dos relógios fechados à chave.

Certa vez, um menino curioso que espiou pela vitrine contou ter visto Eurípides abrindo o peito de um relógio de bolso com uma pinça e tirando de lá algo que pulsava, vermelho e úmido, como um coração. Ninguém acreditou no garoto. Mas ele cresceu com medo de usar relógios.

O tempo passou. Décadas se foram. A loja continuou igual — os ponteiros girando, o pó acumulando, o cheiro de ferrugem e vida parada. Até que, num 31 de outubro, quando a cidade se vestia de sombras e o vento trazia folhas mortas pela calçada, Eurípides desapareceu.

A porta da relojoaria estava aberta. O balcão, intacto. Os relógios, todos marcando a mesma hora: meia-noite em ponto. Nenhum deles fazia som. O silêncio era absoluto, como se o tempo tivesse parado para respirar.

No chão, um único vestígio: o casaco de Eurípides e, sobre ele, um relógio de bolso que batia devagar, tic… tac… tic… tac…, com um som que lembrava batimentos humanos.

A polícia nunca encontrou o relojoeiro. Alguns diziam que ele tinha sido engolido pelo próprio ofício. Outros, que o tempo enfim o cobrara por tudo que ele roubara. Há também quem jure que, nas madrugadas frias de outubro, se pode ouvir, ao passar pela esquina da Conde do Pinhal com a São Joaquim, o leve som de uma chave girando e dezenas de relógios voltando a bater — como corações despertando.

E se você prestar atenção demais, pode jurar que um deles está batendo no mesmo ritmo que o seu.

Até parar.

Tic. Tac.

Eurípides agradece.

Um conto são-carlense de Halloween.