
Era sempre à noite. Sempre depois da meia-noite.
Motoristas que cruzavam a Estrada Municipal Domingos Inocentinni, a conhecida Estrada da Represa do Broa, entre São Carlos e Itirapina, voltavam atônitos — se voltavam. Falavam de uma criatura com silhueta de mulher, translúcida como cristal, parada bem no meio do asfalto. Seu corpo parecia feito de vidro soprado, reluzente sob o luar. Quem a via, freava bruscamente ou tentava desviar, e assim vieram os acidentes. Muitos. Alguns fatais. A curva da morte parecia tê-la adotado como filha.
Não tardou para chamarem ele: o delegado Antunes. Ninguém mais, só ele. O homem que investigava casos que beiravam o absurdo, especialista não em ciência ou perícia, mas em intuições e enigmas. Seu histórico incluía um caso de um cavalo que atravessava paredes e outro de uma senhora que sonhava os crimes da cidade antes que eles acontecessem. Antunes era da velha guarda, mas seus métodos… nem tanto.
Durante sete noites ele patrulhou aquela estrada, sem piscar, sem café. Levava lanterna, caderno, revólver e um amuleto que ganhara de um curandeiro em 1983. Nada viu. Nem vidro, nem mulher, nem vulto.
Mas na oitava madrugada, às 3h43, o celular tocou com uma mensagem anônima:
“Perto da Santa Cruz, há uma jovem desmaiada. Muito pó de vidro ao redor.”
Ele partiu imediatamente, guiado pela névoa espessa e pelo farol trêmulo da viatura. Encontrou a cruz à beira da estrada, antiga, desgastada pelo tempo. E ao lado dela, caída sobre a terra úmida, estava a moça. Jovem, pálida, com cortes finíssimos nos braços como se tivesse atravessado espinhos de cristal. Ao redor dela, cintilando sob a luz da lanterna, havia finas lascas de vidro, como se alguém tivesse explodido uma vitrine.
Ela respirava, mas não respondia. Os olhos abertos, vazios de tudo.
Socorrida e levada ao hospital, a jovem sobreviveu. Mas sua memória… zerada. Sem nome, sem origem, sem um fragmento sequer de lembrança. Quando tentava falar, sua voz falhava como se reverberasse de dentro de um aquário. E ao toque de luz muito forte, seus olhos piscavam em reflexo tardio — como vidro encontrando sol.
O caso permanece sem solução. E mesmo depois disso, vez ou outra, alguém diz que viu o brilho de uma mulher de vidro atravessando a estrada. Delegado Antunes não comenta mais. Mas deixou um bilhete em sua gaveta:
“Há coisas que se quebram para sempre e ainda assim continuam inteiras.”
Este é um conto de ficção. Qualquer semelhança com nomes, locais ou eventos reais é mera coincidência. Nada disso aconteceu. Mas, se for dirigir à noite por essa estrada… bem, mantenha os faróis atentos. Só por precaução.






