As memórias de Belarmino, marcadas pelo Alzheimer, e que adorávamos ouvir

Na rua em que cresci, nos anos 80, em São Carlos, havia uma figura singular que marcava nossas tardes depois do futebol. Sentado em frente à sua casa, o Sr. Belarmino era uma presença constante, quase como parte da paisagem. Passava os dias ali, observando o movimento da rua, o olhar distante e o semblante sereno de quem já tinha vivido muito mais do que o mundo ao redor poderia imaginar.

Belarmino era ex-funcionário da FEPASA, e, em seus tempos áureos, conduzia trens de passageiros e de carga por todo o estado de São Paulo. Para ele, cada estação, cada trilho era um pedaço de uma história maior, uma vida costurada entre paradas, embarques e despedidas. Só que agora, já com mais de 75 anos e marcado pelo Alzheimer, essas memórias vivas eram as únicas coisas que restavam intactas.

Depois de cada jogo de bola, nós, garotos de pernas raladas e rostos suados, fazíamos questão de parar e conversar com o Sr. Belarmino. Ele sempre começava do mesmo jeito:
— Quem são vocês mesmo? De quem são filhos?

Respondíamos com paciência, porque sabíamos o que vinha a seguir: um mergulho nas histórias do passado. E, embora fossem quase sempre as mesmas histórias — a estação de Araraquara, a madrugada fria em Jundiaí, o trem parado por um atraso inesperado —, cada palavra carregava uma sabedoria única. Ele falava com um brilho nos olhos, como se estivesse revivendo aqueles momentos, e sua voz ganhava força ao narrar como superava os desafios de um maquinista.

O mais curioso era que, mesmo sabendo que ouviríamos outra vez as mesmas histórias, ninguém reclamava. Aprendemos a escutar, e isso nos ensinou algo raro: o valor da repetição. Percebemos que, em cada relato, havia detalhes diferentes ou um conselho que só fazia sentido conforme crescíamos. Para Belarmino, cada história era nova, porque a memória lhe escapava; para nós, era uma oportunidade de revisitar aquelas lições e enxergá-las com olhos renovados.

— Na vida, meninos, é como no trem. Não adianta correr demais, porque o trilho só leva a um destino de cada vez — ele dizia, gesticulando como se apontasse para um horizonte invisível.

Naquele tempo, não tínhamos pressa de ir embora. Sentávamos ali, ouvindo as histórias de Belarmino como quem folheia um livro antigo e valioso. Ele nos ensinou, sem saber, a dar valor ao momento presente, a importância de ouvir e, mais que isso, de aprender a cada conversa, mesmo que a lição parecesse já conhecida.

Hoje, quando passo pela rua e vejo o lugar vazio onde o Sr. Belarmino costumava estar, sinto uma pontada de saudade. Não pelas histórias, mas pela simplicidade com que ele nos ensinava algo que só entendemos depois de adultos: ouvir, de verdade, é um ato de carinho. E que, mesmo quando uma história é repetida, sempre há algo novo a ser descoberto — basta estar disposto a escutar.