Coluna Alternativa A: Espanque, mas sem falar palavrão

Por Glauco Keller

Embora eu não seja psicólogo, tampouco especialista em violência, a mim me parece claro  que algumas práticas de violência sejam mais graves do que àquelas que não levam às vias de fato.

Não é essa, contudo, a percepção que o falso moralismo brasileiro tem e isso, infelizmente, não só justifica, mas estimula a violência. Se o comportamento é aceito e reforçado socialmente, por que o agressor irá evitá-lo?

Talvez o maior exemplo disso sejam os filmes, séries e novelas brasileiras. O pudor preconceituoso de origem religiosa do brasileiro não aceita palavras vulgares nas traduções ou legendas.  Assim, quando o persongem diz “fuck you”, rapidamente lemos “vá se danar”. Um asshole que deveria ser livremente traduzido por cuzão vira cretino, pois o cunho sexual do suposto palavrão ofende a moral e os bons costumes do cidadão de bem. O personagem pode bater, espancar e atirar no outro. Sem problemas, mas não ouse beijar uma pessoa do mesmo sexo, pois vulgaridade tem limite.

E o curioso é que a elite pudica frequentemente não é elite financeira, mas se julga no direito de dizer o que é vulgar ou não. E o mais curioso ainda é que vulgar é tudo aquilo que é popular. O latim vulgar que deu origem à língua portuguesa, por exemplo, era o idioma falado pelas pessoas comuns da antiga Roma e de suas possessões.

A hipocrisia é tão grande que obriga roteiristas e diretores a tirarem a veracidade e a verossimilhança de cenas das novelas e séries de todo o país. Em uma das mais emblemáticas, Maria Clara, personagem de Malu Mader, dá uma surra em Laura, Claudia Abreu. Na cena, da novela Celebridade, de 2013, dirigida por Dennis Carvalho, cada vez que Laura ia xingar Maria Clara, levava uma bofetada e, pasmem, a violência física tornou-se um recurso comum na teledramaturgia para evitar o palavrão. Espanque, mas não chame de “filho da puta”.

Nesse modelo perverso, proliferam os espancamentos e os tiroteios na ficção e na realidade, mas as cenas de sexo são passíveis de censura e críticas dos conservadores.

Enquanto isso cada vez mais feminicídios acontecem, chacinas praticadas pelo estado nas periferias abundam e os livros são trocados por armas.

Tudo isso é quase que literalmente um tapa na cara da sociedade. E tem de ser um tapa na cara mesmo, pois se fosse um xingamento, o moralismo e os bons costumes seriam ofendidos; mas como são apenas mortes de mulheres, crianças, pretos e pobres, não há problema. Dane-se.