Coluna Alternativa A: Não pare na pista*

Disco emblemático de Raul Seixas

Por Glauco Keller

Durante muito anos, junto com o meu amigo Alex Turci, professor de história e sociologia, visitei muitas cidades do interior de São Paulo levando a palavra…, a palavra do Rock’n’Roll. Apaixonados pelo assunto, mergulhamos na história do Rock e, após uma extensa pesquisa que envolvia curiosidades, nomes e características de cada década musical, baixamos vídeos, fotos e pusemos o pé na estrada para contar a “História do Rock”. Isso foi no final da década de 90 e começo dos anos 2000.

Lembro-me de irmos à Pirassununga, Sertãozinho, Americana, Araraquara, Ribeirão Preto, Brotas, Rio Preto, Ilha Solteira e tantas outras cidades. Falávamos sobre as origens pobres e pretas do Rock, Blues, Jazz, dos campos de algodão no Sul dos EUA, da fusão com a country music, do Gospel. Encantavam-me os olhares das pessoas ao perceberem que abordávamos não apenas os aspectos sonoros do ritmo, mas suas características culturais e sua importância para metamorfosear o século XX, quebrando preconceitos, lutando por novas práticas sociais e comportamentais; a jaqueta de couro do Marlon Brando, em O Selvagem da Motocicleta, de 1953, os cabelos longos do Beatles, o gingado do Elvis, o visual tribalístico dos Rolling Stones, a voz marcante da Janis Joplin, o Jim Morrison provocando o status quo, Woodstock, os movimentos civis, o U2 com Sunday Bloody Sunday, pedindo um basta na guerra entre católicos e protestantes na Grã-Bretanha e tantas outras histórias.

Meu encantamento era esse. O Rock se fundia à juventude e ao pensamento progressivo numa amálgama que tinha uma capacidade de adaptação que buscava a quebra de regras, de paradigmas e trazia a igualdade na lenda da caveira que não é preta, nem branca, não tem gênero ou idade e representava qualquer indivíduo. Meu coração palpitava com o Rock político da simplicidade operária punk, com os acordes detalhistas dos progressivos, com a poesia do Bob Dylan e com as cores da psicodelia. No Brasil, o Raul, os Secos e Molhados, os Mutantes, a geração de 80. O Rock olhava para frente. Sua essência estava em nunca conservar-se, em sempre mudar, reinventando-se democrática e ritmicamente.

Por isso, a razão desta crônica jaz em uma única pergunta: onde tudo isso se perdeu?

Hoje, o Rock é música banal e não banal “da propaganda e do fundo de comercial”, como disseram Raul e Marcelo Nova. O rock, com erre minúsculo, olha para o passado e reverencia seus ídolos velhos, ouvindo sempre os mesmos acordes e arranjos com a mesma arrogância que os brancos da classe média americana dos anos 40 tiveram ao pensarem que sua música das “big bands” é que era passível de ser ouvida e chamada de arte. O Rock emergente, para eles, era música pobre na essência e na cara.

Hoje, contudo, tristemente, vejo os roqueiros que tanto lutaram e pregaram inclusão social, direitos de minorias e fim de guerras em todo o mundo, tornarem-se conservadores e prepotentes a ponto de criticar a música da periferia, a música preta e pobre do funk e do hip-hop. São esses artistas das favelas os novos B.B. King, Arthur “big boy” Crudup, são a Strange Fruit, da Billie Holiday e o country preto do Chuck Berry, são o feminismo invocado da Etta James que provocava transbordamentos de sensualidade.

Entristeço-me quando ouço “Como nossos pais”, do Belchior e constato que hoje uma camisa preta e uma guitarra na mão olham para o passado, tomam cerveja artesanal de trinta reais e vão dormir cedo para trabalhar no mundo corporativo.

Em recente conversa sobre o tema com meu querido amigo e exímio professor e pensador Diego Aléxis da Silva, ouvi a sábia frase: “Glauco, o rock envelheceu e envelheceu mal”. Por isso, gostemos ou não, hoje, Rock na essência do termo é a Anitta que não se furta em peitar o fascismo destes tempos– qual o roqueiro que levantou a voz contra o genocídio brasileiro? O Rock é a Pablo Vittar que desperta desejos no cidadão de bem, é Lineker, Johnny Hooker e tantos artistas que miram o futuro da favela e falam sobre violência policial e crimes cometidos pelo estado brasileiro contra jovens pobres e pretos de periferia. Enquanto isso, os roqueiros estão pagando cem reais para entrar em estacionamento de shopping center para ganhar caneca da moda e tomar IPAs, comendo picanha com molho barbecue sentado na Harley Davidson. Viva o Clemente Nascimento e o Mano Brown que não se venderam. “Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar”, mas, infelizmente, o rock se sentou, tornando-se o “dito cidadão respeitável que ganha quatro mil cruzeiros por mês**” O rock parou na pista.

* Não pare na pista, nome de canção de Raul Seixas e Paulo Coelho, constante no álbum Gita, Universal, 1974.

* * Versos da canção Ouro de Tolo, de Raul Seixas. Krig-Ha, Bandolo, Phillps, 1973.