Coluna Alternativa A: O meu Zé Celso

Zé Celso tinha 86 anos

Foi em 1995 ou 1996, não me lembro bem. Eu tinha acabado de entrar no curso de Letras na Unesp de Araraquara e o mundo novo da universidade pública se abria para mim. Aulas, discussões, palestras, festas, drogas, bebidas e vida.

Embora eu já trabalhasse dando aulas de inglês e não conseguisse aproveitar a intensidade da faculdade e dos amigos, entrei para o grupo de teatro convidado por uma amiga do nosso Centro Acadêmico Paulo Leminski. Na época, o teatro ainda exercia uma atração sobre nós estudantes, algo que, infelizmente, hoje não consigo enxergar. A música e o cinema são as artes jovens do momento. Em Araraquara, na época, na Unesp, em especial, o teatro ainda tinha grande importância e nele um nome era a nossa referência: José Celso Martinez Corrêa.

Em nossas rodas de prosa, festas e aulas, sempre falávamos dele. Eu mais ouvia. Era o mais novo e rapidamente descobri que ficando quieto eu aprendia mais rápido. Assim, as façanhas do Zé me foram aos poucos sendo apresentadas. Nosso grupo de teatro mais ensaiava do que encenava, mas, em uma das poucas apresentações no anfiteatro da Faculdade, interpretei Shylock, o Judeu agiota da peça “O mercador de Veneza”, de William Shakespeare. Para compor o personagem sem consciência alguma, me inspirei no Zé Celso, no seu jeito de agir, de se mover, na voz provocativa e, em especial, no seu olhar coberto pelas sobrancelhas que amedrontavam quem ousasse olhar em seus olhos.

Alguns meses depois, Zé Celso daria as caras no auditório da Unesp para falar sobre arte, cultura e política. Anfiteatro lotado para ver o deus araraquarense do teatro. Zé, de camisa preta, jeans e descalço, brilhava no palco e nossos olhos brilhavam na plateia. Na época, o país começava a compreender o que era uma democracia, mas os resquícios da ditadura ainda estavam latentes e a importância do Zé Celso e as histórias do Teatro Oficina – que, por ironia, nunca conheci – eram contos de fadas ou fábulas que nos moviam a nós estudantes a olhar e querer uma arte mais pujante e popular, um teatro de estádio, como dizia o Zé.

No final da palestra, ao lado de muitos colegas, juntei-me à aglomeração debaixo do palco para ver Zé Celso mais de perto. Quando consegui me aproximar dele, com a boca seca e sem saber muito o que falar, disse: Você é foda! Vocês que são, respondeu, Zé, com a mão sobre o meu ombro.               

Parte maior de um teatro com influência modernista do final da década de 50, Zé Celso propunha um modelo de interpretação que distorcia conceitos que costumavam agradar a classe média e a burguesia. Nas apresentações do Teatro Oficina, o público tornava-se parte do espetáculo que dispunha de aspectos da vida social que, de maneira geral, não são representadas nas artes: o nu, a sexualidade e o escatológico. A quebra da quarta parede, hoje, vista como vanguarda no cinema, foi para Zé Celso, uma inclusão do espectador na obra e não o tornava, como hoje, mero confidente, dos personagens.

Outro ponto essencial no teatro Celsiano era a necessidade de obscurecer a realidade que não era a peça. Ali, durante o processo de representação, Zé propunha que o espectador estivesse por inteiro, imerso no fazer teatral, esquecendo-se de sua realidade externa. O tempo das peças, em geral, com cinco ou seis horas de duração, era outro fator que propunha ruir com o modelo agradável estética e temporalmente proposto para o espectador acostumado com uma hora e meia de espetáculo visto como a entrada elegante de um posterior jantar regado a Cabernet Sauvignon após a peça.

Zé Celso foi o antropofágico do teatro, uma arte que hoje, infelizmente, deixa de lado sua estética de representação para colocar em cena palestras e discursos que, embora tragam temas relevantes, fogem da essência artística teatral e pregam para convertidos, tornando-se uma arte endógena. Inspirado pelo modelo Oswaldiano, Zé chocou ao propor um teatro que rompia com o modelo europeu, foi o Abaporu do nosso palco, esperou o Godot junto ao Beckett, tropicalizou a Europa em releituras abrasileiradas de textos clássicos, viu atores agredidos e cenários destruídos pelas mãos violentas da ditadura no Roda Vida, do Chico Buarque, foi torturado e exilado, mas nunca perdeu sua essência. Era um homem de teatro na suas entranhas.

Saí da Unesp e troquei os fonemas da interpretação teatral pelas letras escritas grafemizadas da literatura, a arte mais barata e acessível de todas, como brada meu querido amigo professor teatral de literatura, Fernando Blundi, o Fernandão.

A nossa peça “O Mercador de Veneza” teve uma única apresentação, mas em 2001 fiz um grande amigo e, rapidamente, vim a saber que, em cada canto do país, Zé Celso deixara uma semente. Com o Itapê, professor de literatura, ator e diretor de teatro pude, enfim conviver com o meu Zé Celso por mais quinze anos de minha vida. O teatro voltou com o nosso Xou Vixe anual e foi embora de novo, mas eu entendi que os Zés Celsos do Brasil, ainda que latentes, continuam por aí, em todos os cantos, antropofágicos, polêmicos, provocadores e necessários, insistindo em não deixar o teatro morrer!

  • Glauco Keller é professor e jornalista e autor do livro de crônicas Mata-burro.