
O sol de São Carlos havia se esquecido de nascer direito naquela manhã. Uma névoa espessa repousava sobre o asfalto da Rodovia Washington Luís, no quilômetro 234, onde nem as buzinas ousavam quebrar o silêncio — apenas os pneus arrastavam suspiros longos, como se a própria estrada estivesse cansada.
Foi perto de uma passarela enferrujada que o delegado Antunes parou seu carro. O chamado chegara antes das seis: um corpo carbonizado, amarrado a uma cadeira, surgido do nada, como um pesadelo que se materializa entre o mato rasteiro e a fumaça.
O delegado já tinha visto coisas. Muitos cadáveres, mutilações, crimes sem solução. Mas havia algo errado — muito errado — naquela cena. Não era o fogo, nem a cadeira, nem o cheiro de carne queimada e corda queimada e mistérios queimados. Era o fato de que o corpo não fazia sombra.
Sim. Nenhuma sombra. Nem um contorno no chão. O sol já avançava no céu como uma lâmina, mas aquele amontoado de carne permanecia imóvel, flutuando na luz, como se fosse feito de ausência. O mato ao redor se curvava ligeiramente para trás, como se rejeitasse a presença daquilo.
— Isso é coisa de outro mundo… — murmurou Antunes, ajeitando o chapéu de feltro que usava desde o caso da Mulher de Vidro.
A perícia não sabia por onde começar. O tecido da cadeira não queimara completamente. O tronco do corpo se dobrava de um jeito estranho, como se tivesse rido antes de morrer. E os olhos — ah, os olhos! — permaneciam inteiros, mesmo carbonizados. A perícia disse que era impossível. Antunes acreditava. Mas eles estavam ali, olhando.
Ninguém sabia de onde viera a cadeira. Nem o corpo. Nenhum carro queimado, nenhum rastro, nenhuma pegada na terra úmida. O delegado, com sua velha pasta de couro repleta de recortes e desenhos infantis, puxou uma folha com uma anotação antiga: “Caso do Homem sem Coração, 1998 – olhos queimados, mas vivos”.
Era a quarta vez que algo assim acontecia. Sempre às margens da Washington Luís. Sempre perto de uma passarela. Sempre com olhos que pareciam entender mais do que viam.
— Alguém — ou alguma coisa — está mandando um recado — disse Antunes ao perito. — Mas em uma língua que a gente ainda não aprendeu a sangrar.
O vento assobiou forte. Uma borboleta negra pousou no ombro do delegado e ali ficou, imóvel. Ninguém ousou espantá-la.
Naquela noite, Antunes não dormiu. Em sua casa, no bairro mais alto de São Carlos, acendeu um cigarro com os olhos cansados, enquanto olhava para um quadro pendurado na parede. Um quadro antigo, de família, que mostrava um homem numa cadeira… exatamente como o da rodovia.
Só que naquele quadro, feito em 1911, a cadeira ainda estava inteira. E o homem… sorria.
Antunes encostou o cigarro no canto da tela. E esperou para ver se, mais uma vez, o fogo sussurraria de volta.
Esta é uma obra de ficção, um conto. Nada é realidade.







