O homem queimado pelo demônio na Represa do 29

Um conto com o delegado Antunes

Naquela manhã enevoada de terça-feira, São Carlos parecia ter acordado sob o peso de um pesadelo não sonhado. A neblina descia em véus sobre a baixada do Mercado Municipal, ocultando as calçadas como se o tempo estivesse em suspenso. Era ali, entre barracas de frutas abandonadas e os ecos metálicos do bonde que não passava mais, que tudo começou.

Testemunhas juraram que o homem vestia um sobretudo mesmo com o calor abafado, os olhos arregalados como faróis desajustados. Ele levou a estudante Mariana sem dizer palavra — apenas apontou para o vazio e grunhiu algo entre dentes cerrados: “Ela já sabe demais”. Sumiram num carro preto sem placas, engolido pela fumaça das ruas apertadas.

Quando o delegado Antunes recebeu o chamado, estava examinando uma ossada encontrada dentro de um armário escolar em uma escola desativada no Jardim Gonzaga. O telefone tilintou com urgência sobrenatural. “Tem coisa ruim nisso aí”, disse apenas, antes de apertar o queixo quadrado e disparar ordens.

As pistas eram tortuosas como sonhos em espiral. Relatos desconexos de pássaros caindo do céu, cães que uivavam em uníssono olhando para o sul, e um velho benzedor que desmaiou ao tocar no mapa da cidade e apontar para a represa do 29.

“Tem uma cabana lá, no meio do mato… Ela não devia mais estar ali.”

A equipe de Antunes avançou por entre trilhas engolidas pelo verde úmido. O ar parecia feito de algodão e cheiro de enxofre. Chegaram à cabana ao entardecer. Mariana estava amarrada a uma cadeira, os olhos arregalados, mas intacta. O homem, de pé ao lado da porta, os esperava. Antunes sentiu a presença antes mesmo de ver.

“Não se aproximem. Eu sou a boca dele agora.”

“De quem você está falando?”, perguntou Antunes, sem ainda sacar a arma.

“Do que arde sem se ver. Do que vive no vão entre os nomes. Ele pediu fogo.”

Foi então que o homem abriu os braços e gritou um nome que ninguém conseguiu repetir depois. As chamas brotaram do próprio peito, como se a combustão viesse da alma, e não do corpo. Ardeu rindo. Ardeu gritando palavras antigas, em línguas que nem o vento quis traduzir.

A equipe nada pôde fazer. Mariana foi retirada às pressas, olhos fixos no céu como se procurasse uma saída que não estivesse na terra. Antunes, de volta à delegacia, escreveu no relatório apenas: “Se matou. Por possessão. Ou por vontade de deixar um aviso.”

Na manhã seguinte, a cabana havia desaparecido. No lugar, apenas uma árvore carbonizada. E em seu tronco, riscado com fogo, lia-se uma frase: “Eu voltarei quando os homens esquecerem o som da própria voz.”

Antunes não voltou à represa. E evitava, desde então, o caminho pela baixada do Mercado.