Um defunto na Praça Coronel Salles

Essa é uma obra de ficção

 

Ela permaneceu sentada na Praça Coronel Salles, eram 21h50, havia saído da escola. Aquele dia duro havia terminado com uma prova de matemática que sabe Deus como foi difícil terminar.

Desceu pela avenida São Carlos até chegar ao seu banco. Estranhamente, naquela noite, havia uma senhora apenas em pé, com umas três sacolas, esperando um ônibus. A velha ingressou logo no primeiro Vila São José que subiu em direção da rodoviária.

Uma quinta-feira, um dia com ventania, mas de céu estrelado, porém com o friozinho são-carlense aparecendo a todo momento.

Sentada, cruzou as pernas, segurou o material, era baixinha, gostava de brincar com o seu tamanho e então levantou suas pernocas do chão e as cruzava sem parar. Deu uma olhadela no celular, viu que eram quase 22 horas, dez minutos haviam se passado desde que tinha chegado e nada do ônibus aparecer.

Nisso, um senhor, aparentava uns 75 anos, terno alinhado, tinha cara de pregador, mas não estava com a bíblia nas mãos chegou ao ponto. Usava uma roupa cinza, um chapéu de camurça, tinha uma barba aparada, se sentou do lado da jovem.

Ela prestou atenção no rapaz, primeiro porque uma mulher sozinha nos dias de hoje num ponto de ônibus deve ficar sempre atenta, depois porque o homem realmente estava bem vestido, coisa rara nos dias atuais. Ela pensou: “Ele parece que saiu de um festa, parece que tá com roupa de defunto!”

O homem olhou o seu relógio de bolso, viu as horas, e percebeu que a jovem começou a reparar no seu antigo marcador.

– Ah minha jovem, esse é antigo! Ganhei do meu pai, há muito tempo!

Ela apenas de uma franzida de testa em sinal de concordância. O homem insistiu na conversa:

– Hoje as noites são diferentes, está ventando muito para essa época do ano! Quando era estudante não tinha tanto vento assim!

Do nada a menina resolveu conversar:

– Aqui nesse lugar sempre ventou, dizem que os prédios ajudam nesse tipo de fenômeno, não sei bem ao certo, não sou arquiteta e nem engenheira, só estudante mesmo!

Joyce ficou se perguntando porque tinha falado com aquele homem, nem ela sabia, mas parecia ser irresistível conversar com ele.

– O senhor é daqui de São Carlos?

– Não sou, nasci em Uruguaiana, no sul do Brasil, mas vim para São Carlos bem cedo com meu pai, isso lá pelos anos 60. Meu pai veio para cá buscar trabalho, um dia olhou para o mapa e decidiu que iria morar no interior de São Paulo, quando chegamos na rodoviária paulistana o primeiro ônibus que apareceu vinha para cá, e aqui estou!

Ele contou que foi barbeiro, que cortou cabelo em clubes sociais, que atuou em sindicatos e que teve seu próprio salão, mas que também trabalhou como carpinteiro e que fazia de tudo, inclusive caixões para defunto!

A jovem riu, Joyce nunca havia imaginado que encontraria um barbeiro-carpinteiro que fizesse caixões de defunto.

– Minha jovem, na vida temos que fazer de tudo, construir caixões é uma arte também! Quando você morrer também precisará de um, eu precisarei, a morte será para todos!

Enquanto falava da morte, o homem lustrava com o lenço um anel com uma pedra vermelha. Joyce observou e quis saber do que se tratava.

– Esse anel pertencia à minha esposa, Marilda, morreu em 1989, foi uma doença rápida, eu mesmo fiz questão de fazer o seu caixão. Demorou, mas entalhei cada detalhe, com lágrimas e suor pude dar uma despedida digna para a minha amada, depois disso nunca mais me apaixonei por ninguém!

A estudante olhou seu relógio e viu que eram 22h15  e seu ônibus para o Jóquei Clube estava chegando. Ela se despediu do senhor do chapéu e perguntou seu nome.

– Aristides. Esse é meu nome, Aristides Bueno Camargo. Ao seu dispor, boa noite, minha jovem!

Joyce subiu no ônibus e de longe viu aquele senhor lhe abanar a mão com sua roupa clássica, um perfume antiquado que cheirava flores e seu chapéu estiloso. O ônibus subiu a avenida São Carlos e os pensamentos da garota foram muitos, ela queria saber como a sua vida iria se desenrolar e como foi conhecer naquele dia uma pessoa que fabricava caixões.

Quando o “busão” passou pelo Jaú Serve da avenida São Carlos e chegou quase no sinaleiro do Carrefour o trânsito foi interrompido. Viaturas da Polícia Militar estavam por todos os lados cercando tudo e a Perícia Técnica da Polícia Civil estava na área, ninguém conseguia passar, o trânsito era bem lento. Joyce colocou a cabeça na janela para ver o que estava acontecendo e notou que a confusão vinha do velório municipal, um aglomerado de pessoas estava na frente do prédio público, muitos gritavam abanavam as mãos e não sabiam o que fazer.

Foi quando resolveu acessar os sites da cidade para saber se havia alguma notícia, pois tinha visualizado que a imprensa estava presente no meio daquele fuzuê. Ao passear pelos portais a notícia era a mesma: “Defunto é roubado do Velório Municipal em São Carlos”

– Caceeeeeeeeeeeettttteeee! Gritou, Joyce!

Num impulso, Joyce resolveu descer do ônibus, seu ímpeto para saber o que aconteceu foi maior que qualquer coisa. O ônibus praticamente parado não lhe ofereceu perigo. Ela rasgou a praça, cortou a multidão e foi até o local.

Ali, viu um vigia que estava na área e se fez de repórter e foi logo perguntando:

– O que aconteceu aqui?

O vigia deu todo o serviço:

– Normalmente, por volta das 21h30, algumas famílias vão embora e fecham o velório. Essa família disse que deixou o ente querido aqui, mas quando passei, não tinha nada, o caixão estava vazio. Por isso, liguei para funerária, eles vieram aqui, avisaram a família, a polícia, eles juram que o homem estava aqui, que tinha um velório, quando cheguei para trabalhar estava lotado, não vi o corpo, apenas fui para o meu posto!

– Mas o senhor tá dizendo que o defunto fugiu?!

– Sim minha jovem, é o que eles alegam!

Joyce correu para ver a placa que fica pendurada com o nome do falecido e quando leu suas pernas amoleceram. Lá estava escrito: Aristides Bueno Camargo. Isso mesmo, o cara com quem ela havia conversado meia-hora atrás!

A dúvida ficou em sua cabeça. Contar ou não contar? Falar para todos e ser taxada como louca? Ou então guardar esse segredo surreal para o resto da sua vida?

Ao seu lado, pertinho, Joyce viu o delegado de plantão dando entrevistas e dizendo que quem roubou o corpo deveria ter vergonha e que isso era um acinte e que a pessoa mofaria na cadeia, pois não dá para esconder um corpo em qualquer lugar. O detalhe é que a família chegou ao local e encontrou apenas a porta aberta e nada quebrado, o que impressionou ainda mais a garota.

Joyce pensou rapidamente e resolveu ficar quieta. Sorrateiramente foi se retirando da cena e assim chegou novamente na avenida São Carlos onde embarcou num outro ônibus para a sua casa.

Quando chegou levou uma bronca de sua mãe porque havia demorado, mas aí resolveu contar que a avenida estava interditada, mas não disse o motivo, não quis levantar a lebre da senhora de cabelos brancos.

Depois de tomar um banho e colocar sua camisola do Snoopy, Joyce deitou e imaginou de todas as formas como era conversar com uma alma penada, com um morto-vivo ou com alguém que morreu, mas morreu (?).

Ela resolveu pesquisar no dia subsequente ao fato o endereço da carpintaria e descobriu que a mesma ficava na Vila Prado, perto do seu local de trabalho. Foi até lá e para a sua surpresa a placa na porta dizia: “FECHADO POR LUTO”.

Joyce ficou impactada durante todo o dia com a situação e assim continuou seus afazeres. Foi para a escola e naquela noite novamente passou a esperar o ônibus na Praça Coronel Salles, mas dessa vez com muitas pessoas ali. O homem não apareceu.

Seguindo seu caminho, ela subiu no ônibus, passou pela avenida, entrou no seu bairro e desceu. Caminhou para a casa no fim de mais uma jornada e quando chegou em frente de sua residência notou que um chapéu estava pendurado na maçaneta do portão.

Seu coração acelerou, o suor escorreu pela testa. Ela correu e pegou o chapéu nas mãos. Nele, o mesmo perfume do velho de ontem à noite. Dentro do chapéu, caprichosamente pregado com um alfinete um bilhete dizia: “Joyce deixe minha alma e meu corpo perambularem em paz por aí! Ontem você não viu nada! Uma hora volto para conversar com você e lhe contar o que houve! Obrigado pela atenção que me deu! Aristides.”

Joyce sentou em frente de sua casa, numa noite de muito frio e vento e não sabia o que dizer. Quando entrou na sala disse para a sua mãe que havia ganhado o chapéu de um amigo. O caso do defunto que sumiu continuava sendo investigado pela polícia. Mas será que ele morreu mesmo?

Renato Chimirri