Coluna Alternativa A: Quem planta, colhe

Dias sombrios....
  • Por Glauco Keller Villas Boas

Já falei aqui nesta coluna faz algumas semanas que nossa falta de empatia não foi construída no governo Bolsonaro. O presidente e seus seguidores são produto de uma sociedade construída durante muito tempo no Brasil e potencializada pelos programas de TV de hard News que há três décadas banalizaram a morte, pela internet, pelo preconceito histórico escondido atrás da casca do ‘homem cordial’ e pela falácia da democracia racial, além da educação voltada para o mercado de trabalho.

Acabo de ler um livro maravilhoso, chamado “O peso do pássaro morto” sobre o qual pretendo dissertar aqui uma hora dessas e no qual Aline Bei, sua jovem autora entre tantas reflexões importantes destaca através da narradora-personagem que “O moleque não tinha nem nascido e já tinha gente pensando na sua profissão. O trabalho é por tantas vezes a maior tristeza na vida de uma pessoa e é só nisso que os pais pensam, no filho crescendo e sendo alguém, sendo que esse ser alguém envolve tudo menos Ser”.

Infelizmente, parece que é isso o que nos restou. Educamos o ser humano para trabalhar e juntar dinheiro, independentemente dos meios que utilizará para tal.

A sensação que a pandemia da COVID-19 nos trouxe é a de que é cada um por si e Deus por todos, como diz o ditado popular. Não usar a máscara, aglomerar e desrespeitar todo e qualquer protocolo sanitário é, de fato, reflexo daquilo que parte da sociedade brasileira pensa. Alguns vivem numa bolha e creem estar certos de cuidar de si mesmos em detrimento da preocupação com os outros.

Meu padrinho, Laerte Gorni, do auge de seu conhecimento adquirido nos mais de oitenta anos de vida, me conta que seu pai, vindo da Itália, fugido da guerra, muitos anos depois de estar relativamente bem de vida e tendo posses e patrimônios aqui no Brasil, guardava o azeite, o sal e o vinagre usados para temperar a salada do almoço em uma xícara para temperar os legumes do jantar. Havia passado por privações tão grandes que a fartura não mais lhe assustava. Era preciso que alguém jogasse uma casca de banana rapidamente dentro da travessa com o tempero para que ele abortasse a ideia, ainda que resmungando.

Sob esse olhar, o fato de não termos vivido, como a Europa, duas grandes guerras, fez com que a nossa fartura (das classes média e alta brasileiras) nos fizessem crer que somos intocáveis e que não precisamos do outro ou de cuidado com a natureza, com o descarte adequado do lixo ou de apagar as luzes e fechar a torneira quando não a estamos utilizando. A ausência, a carência e a necessidade não nos são evidentes. Olhamos a favela com desdém, tratamos o preto do morro como vagabundo e não como vítima de uma distribuição desigual de riquezas.

Como educador, desta forma, sinto que falhei, infelizmente, achando que estava fazendo o correto. Nossa falta de empatia e alteridade tem se demonstrado tão grande e frequente que me entristeço em saber que muitas dessas pessoas que hoje defendem ditaduras, torturas, porte generalizado de armas, além do discurso negacionista de Jair Bolsonaro, foram meus alunos, passaram por minhas mãos e, de alguma forma, eu não consegui evitar esse comportamento, embora seja, junto de toda a classe de professores do país, chamado de comunista e doutrinador.

O livro Emilio, ou Da Educação, do filósofo Jaques Rousseau, de 1762, aborda temas políticos e filosóficos referentes à relação do indivíduo com a sociedade. Nele, Rousseau afirma que o indivíduo precisa ser preservado da corrupção da sociedade. Segundo ele, antes que ensinemos à criança conceitos de matemática, ciências ou linguagens devemos lhe ensinar a amar o próximo, a zelar pelo que é público e a ter empatia com o seu semelhante. Esse fato, evidentemente, evitaria que tivéssemos doutores genocidas, mestres torturadores ou ditadores especialistas em astrofísica.

Infelizmente, qualquer tentativa que a escola faz no sentido de ensinar seus alunos a respeitar as diferenças, compreender as diversidades de etnias, de orientações sexuais ou de combate a preconceitos é vista como doutrinação, pois para aqueles que vivem em um modelo patriarcal e retrógrado, qualquer mudança de paradigma reflete na sua visão de mundo. A tendência do conservador é manter o mundo como está, como ele conhece e sabe lidar. Por isso, cada vez que alguma força tenta alterar preceitos e comportamentos considerados tradicionais (ainda que esses sejam extremamente negativos), o reacionarismo surge, pois “como assim o mundo vai mudar se eu o entendo do outro jeito?”. É mais fácil para o negacionista fechar os olhos para as mudanças do que se adaptar a elas, afinal, pensam “o mundo que eu conheço sempre foi assim, por que querem mudar agora?”.

Tais práticas são silenciosas e andam a passos lentos. São sementes de tâmaras que demoram a dar frutos e crescem quietas e, muitas vezes, imperceptíveis, mas, infelizmente, para a nossa sociedade, estamos vivenciando o momento da colheita. Estamos descobrindo que os frutos daquilo que temos feito são amargos e venenosos. Cabe a nós mudar o próximo plantio.

  • Por Glauco Keller Villas Boas é professor e jornalista.

Imagem de PublicDomainPictures por Pixabay